Estava entardecendo. As nuvens rolavam pelo céu rasgado por alguns relâmpagos ao longe, nos lados da Cantareira. O vento arrastava latas vazias e folhas de jornal pela rua, janelas batiam, pessoas fechavam apressadas as portas das lojas, das casas, os homens cerravam com força as marquises metálicas das bancas de revistas. Um trovão explodiu distante, depois outro, mais perto. Um cão ganiu, depois uivou. Vai cair uma tempestade, pensei, e comecei a caminhar rápido em direção ao Ibirapuera, à procura de táxi ou ônibus, antes que as ruas ficassem alagadas, intransitáveis, a cidade em estado de calamidade, como em todas as tardes de verão.
Da sacada de um edifício, alguém gritou:
- Eparrê, eparrê-i, Iansã!
Foi nesse momento que a vi.
Numa das esquinas em frente ao parque, no meio da ventania, embaixo da quaresmeira coberta de flores roxas, estava parada Dulce Veiga. Toda vestida de vermelho, uma rosa branca aberta, presa na gola do casaco, a bolsa da mesma cor pendurada num dos braços cruzados, com luvas de cano curto brancas. Repartidos exatamente ao meio, cobrindo suas têmporas e as maças salientes do rosto, os cabelos louros e lisos caíam em duas pontas no espaço entre os lábios finos e o queixo um tanto orgulhoso, que ela erguia para olhar melhor na direção que eu vinha, sem sorrir nem fazer gesto algum. Estava ali parada, indiferente à ventania e às primeiras gotas esparsas de chuva. Concentrada, paciente. Como se depois de todos aqueles anos, esperasse por mim.
Quando alcancei a esquina oposta, esperando o sinal abrir, tão próximo que podia ver o fio de pérolas no seu pescoço, do outro lado da rua ela ergueu o braço direito, indicador estendido para o céu, num gesto igual ao de Márcia antes de começar a cantar. No mesmo instante, um raio de prata caiu entre as árvores do parque. Fechei os olhos, ofuscado. Ao abri-los, entre as brechas dos carros passando e a primeira saraivada fria de chuva na minha cara. Dulce Veiga não estava mais lá.
quarta-feira, 11 de junho de 2008
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